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A gente lemos: Um cântico para Leibowitz

Acho que foi com aquele desenho animado bais ou benos do Highlander que passava nos anos 90 que eu tive o primeiro contato com a noção de distopia pós-apocalíptica. Claro, eu já tinha tido contato com filmes, HQs e outras milongas do gênero, mas acho que foi mesmo no desenho animado que aquilo me chamou atenção.

E, ao mesmo tempo, instalou em mim um cagaço e uma certeza: ainda vai acontecer uma treta sinistra que nos obrigará a viver (de novo) num mundo offline e de baixa tecnologia. Não sei se eu vou viver até lá, mas pelo menos é isso que eu uso de desculpa pra Srª Porco não estrelar muito porque eu ainda compro livros físicos, CDs, DVDs e blu-rays. Alguém tem que arcar com a responsabilidade de ter esse tipo de coisa num bunker quando esse futuro negro vier.

Pois foi assim que dei de cara com Um Cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr., livro que, se não for o inventor dessa paranoia de distopia pós-apocalíptica de baixa tecnologia, provavelmente é um dos percursores. Ganhador do prêmio Hugo de 1961, o livro (vou chamar de UCpL, pra economizar o teclado) narra a história do planeta Terra após um hecatombe nuclear total, o Dilúvio de Fogo. Grande parte da humanidade foi exterminada, e os restantes se tornaram ignorantes, além de uns mutantes bizarros. Receosos de que uma nova guerra global acontecesse, os sobreviventes promoveram algo chamado “a Simplificação” em que (quase) tudo o que existia de conhecimento humano escrito foi destruído.

Pra nós, a história começa 600 anos depois daquele holocausto, quando um noviço, o Irmão Francis da Ordem Albertina de São Liebowitz, cumpre seu retiro pré-votos no devastado deserto de Utah. De repente, um estranho peregrino chega e revira completamente o mundo de Francis, da Ordem Albertina e de parte do mundo conhecido.

A trama é dividida em três diferentes tomos (Fiat Homo, Fiat Lux e Fiat Volutas Tua), cada um desses períodos serve para avançar grandemente a História do mundo de UCpL: começamos com a Terra desvatada pós Dilúvio do Fogo e pós Simplificação, quando a memória desses eventos ainda existe de maneira vívida. Ficamos sabendo que a Ordem de São Liebowitz, reverencia o ainda não-canonizado Bem aventurado Liebowitz, alguém que, ao que parece, era um cientista ou algo que o valha, martirizado na ou em decorrência da Simplificação. Sua ordem de devotos se dedica a procurar, conservar e estudar o que restou do conhecimento humano, acumulando peças diversas e fragmentadas em sua Memorabilia. Isolados num mar de ignorância, os monges copiam os documentos que encontram e tentam desvendar os mistérios daquela ciência perdida como arqueólogos.

Em Fiat Lux, passaram-se alguns séculos e o mundo já está melhor estruturado, a ciência já não é mais um campo proibido. Há governos constituídos, e estudiosos começam a despontar como figuras importantes, o caso de Thon Taddeo, interessado em investigar os mistérios daquela “outra civilização”, ao mesmo tempo maravilhosa e misteriosamente extinta. O Monastério de São Liebowitz e sua Memorabilia tornam-se, então, partes essenciais dessa investigação.

Por fim, em Fiat Volutas Tua, o mundo avançou. A Ciência renasceu, e cresceu, provavelmente, para além do que era antes do Dilúvio de Fogo. Mas é o homem, e não a ciência, quem é lobo do homem…

Apesar de não ser assim tão volumosa, UCpL é uma obra extensa e sim, cansativa em alguns momentos. Traz reflexões importantes acerca da função e da manutenção do crescimento, mas também peca em termos de coerência algumas vezes, sobretudo no primeiro tomo. É estranho como, apesar de tudo e todo conhecimento destruído e/ou perdido, a Igreja Católica, figura central da história, ainda tenha conseguido manter perfeitamente intactos sua estrutura e ritos, por exemplo. Nesse sentido, comparado a grandes clássicos da ficção científica como 1984 e Admirável Mundo Novo, UCpL perde por não desenvolver com tanto cuidado a mentalidade ficcional de seus personagens: em um mundo como o que a Terra se tornou, é esperado que a humanidade pense e sinta de maneira diferente do que antes.

Entretanto, mesmo com essas ressalvas, UCpL é um livro importante para quem curte ficção científica, seja pelo valor histórico de ser a peça inicial de um subgênero importante, seja pelas marcas que deixou – a Time o considera top 10 entre os livros pós-apocalípticos de todos os tempos, ao mesmo tempo em que grandes obras contemporâneas (como A Estrada, de Corman McCarthy, que virou filme com o Viggo dos Cárpatos, digo, Mortensen). Por sua vez, a edição da Aleph está bem bacana, com (necessárias) notas explicando os termos de latim (a maioria deles ecumênicos), não presentes sequer na versão original. Não é a toa, a Aleph tá virando figurinha fácil na minha desesperadora fila de leituras acumuladas

 

Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr. Editora Aleph (2014). 400 páginas, R$49,90.

Nota: 6,5

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